Nota do autor: A intenção desse blog não é ser um manual de orientação ou um conjunto de regras que deva seguir. Decidi escrever sobre o mundo do crédito sob minha ótica de experiência como uma forma de confessar o que ja fiz no mundo do crédito, ajudei muitas pessoas, mas sem a intenção de causar mal tenho a ciencia que meu trabalho prejudicou muitas também.
Não desejo que queira/concorde ou não com que está escrito, pois independente de minha ou sua opinião é o que aconteceu ou ainda acontece no mundo do crédito.
Analfabetismo.
Escrevo esse post em 2019, segundo a Folha de São Paulo do dia 20/06/2019 o Brasil tem 6,8% da população analfabeta (que não pode escrever um simples bilhete), nos últimos anos classificamos 2 tipos de analfabetos, aqueles que por quaisquer razões não tiveram oportunidade a base da alfabetização, ficando à margem da comunicação escrita, ou os chamados analfabetos funcionais que lêem mas não conseguem interpretar texto (na mesma reportagem temos 29% da população). Um dia escreverei sobre analfabetismo funcional para matemática financeira.

Por que estou abordando isso?
Comecei minha carreira no mundo do crédito atendendo ao público de alta renda com produtos de crédito indicados a uma classe cuja renda era mais alta, comparada a média dos brasileiros na época (anos 90), o fato de trabalhar com esse público trazia desafios inerentes a cultura do consumo de uma classe social, todas as políticas desenhadas focavam em garantir o atendimento desse nicho de clientes.
Como carreira me sentia preparado para assumir novos desafios para ser gestor e por consequência elevar meu soldo mensal, tentei atingir esse objetivo na instituição em que trabalhei, mas a prata da casa não seria valorizada, por isso procurei e fui admitido para trabalhar como coordenador de crédito em outra empresa, focada em conceder crédito para um nicho de clientes de baixa renda.
Precisei vencer meus próprios preconceitos em trabalhar num lugar menor e sem o glamour de uma grande e renomada empresa, de que adiantava trabalhar em um lugar admirado nos circulos sociais se não conseguia atingir minhas ambições?, decidi ter mais responsabilidade em um casa simples, do que continuar a ser mais um em uma grande empresa, foi então que comecei a desenhar políticas de crédito para produtos focados na baixa renda.
Tínhamos produtos de crédito de R$ 25,00 foi quando perguntei ao meu contratante: Quem precisa de crédito tão baixo?, prontamente ele me respondeu: Pessoas que não conseguem comprar uma calcinha, e precisam dela! Preste atenção, agora esse é o seu novo cliente, BOP (base of pyramid) nosso desafio aqui é atende-lo, esqueça tudo que acha que sabe sobre crédito, aqui você não sabe nada!. Os Klein sabem algo, então estude e se adapte!.
Foi um soco na cara, segundo Mike Tyson todos temos estratégias até levar um, meu chefe era um ogro, atualmente pessoas como ele são processadas por assedio moral (vamos voltar no tempo estamos nos anos 90, assedio moral, sexual e bullying nem figuravam em nosso vocabulário).
A primeira coisa que fiz foi saber quem eram os Klein, a segunda foi entender que P@#! era BOP.
O cliente é analfabeto, ele pode ter crédito?
Naquele ano entramos no mercado com o chamado crédito instantâneo, na época para se ter um cartão de crédito era necessário preencher uma ficha, anexar um carrinho de mão em documentos, esperar dias para a análise de crédito e se aprovado o mesmo vinha pelo correio, na época 25% dos cartões não chegavam as mãos do cliente por erro no preenchimento do cadastro (assunto para outro post).
A proposta era o cliente preencher um cadastro curto, ser aprovado na hora e sair com um cartão simples que era impresso na loja pronto para que pudesse fazer suas compras. Foi um sucesso de vendas, a base de clientes crescia mais que a média do mercado, o foco era crescimento e por isso as políticas de crédito e prevenção à fraudes eram igualmente pouco ortodoxas, algo que renderia muita dor de cabeça no futuro, mas enquanto estivéssemos crescendo e faturando estava tudo certo.
Recebo em minha mesa uma ligação que vinha de uma das representantes regionais (pessoa responsável por uma região geográfica, concentrando várias lojas).
- Bom dia! Estamos com um caso aqui na loja que o cliente gostou da nossa oferta de crédito, ele atende a todos os requisitos da política mas não pode assinar o contrato, pois é analfabeto, podemos conceder crédito a ele?
“Em minha mente foi uma resposta rápida: Ele atende a todos os requisitos, claro que pode ter crédito, afinal ninguém pode ficar sem direitos por ser analfabeto. Mas ele não pode assinar o contrato, e todos devem assinar o contrato, eu sou o “Senhor” todo poderoso do crédito aqui no meu B612 (alusão ao livro O pequeno príncipe), tenho o poder de decidir sozinho… travei não sabia o que responder para a representante regional, nunca tinha passado por uma situação assim antes.”
- Bom dia! Preciso avaliar essa informação, posso te ligar depois? Respondi.
- Claro me ligue em 5 minutos com a resposta, pois o cliente está na loja e precisamos bater a meta!. Desligou ela.
Pela primeira vez eu tinha um pouquinho de “poder” e nem sabia o que fazer com ele, ainda tinha a pressão de 5 minutos para resolver o caso, foi então que liguei para meu antigo mentor (continua sendo até hoje), tivemos o seguinte diálogo.
- Bom dia! Preciso de ajuda, estou com um caso de um cliente analfabeto e... Ele me interrompeu antes de terminar a frase e disse: Negue o crédito!
- Por quê? o cliente atende a todos os requisitos, insisti.
- F@!#-se respondeu ele, clientes analfabetos são considerados hipossuficientes em situações de disputa no caso de inadimplência, pois não assinaram / entenderam os detalhes do produto, logo são risco para a instituição, Negue o Crédito! E desligou o telefone.
Sim, meu mentor também é um ogro. Eu podia seguir sua orientação ou tentar fazer melhor, ser diferente, inclusivo, trazer uma nova roupagem para o mundo do crédito, eu podia mudar o mundo e fazer um lugar melhor. Liguei para a representante regional estufei o peito e disse:
- Crédito NEGADO!
A área comercial contra argumentou que isso não estava descrito na política e que o cliente estava enquadrado, mas a palavra final era minha então NEGADO. Posteriormente reescrevi a política para enquadrar situações dessa natureza.
Não digo a você gestor de crédito o que deva fazer, mas confesso o que eu fiz, devido ao cenário de risco inclusive por má fé.
A estatística de analfabetos não é só um reflexo de miséria, o mercado perde a oportunidade de ter 11MM de clientes consumidores de crédito e isso é muito ruim para o próprio mercado. Avaliando com olhos do presente o que fiz no passado fica mais fácil visionar o futuro, investir na melhoria desse cenário por parte das empresas de crédito não só causam real impacto na sociedade, como podem gerar potenciais 11MM de novos clientes, é uma semente de longo prazo e fica a questão; que empresa de crédito estaria disposta a tal façanha?
Livro: Samuel Klein e as Casas Bahia